Além do Corpo
A
medicina espiritual desperta cada vez mais interesse. Dois eventos
científicos serão realizados para discutir o tema, enquanto centros
espíritas que oferecem tratamento estão lotados
Celina Côrtes, Juliane Zaché e Lena CastellónColaborou Lia Bock
Nesta
semana, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – uma das
mais importantes da América Latina – será sede de um encontro que, anos
atrás, dificilmente ocorreria em suas instalações. No sábado 31,
médicos, estudantes e outros profissionais da saúde estarão reunidos em
um dos auditórios da instituição para participar do 1º Simpósio de
Medicina e Espiritualidade, organizado pela Associação Médico-Espírita
de São Paulo. O objetivo do encontro é fazer uma revisão da literatura
científica sobre o tema e confeccionar uma proposta de inclusão da
disciplina “medicina e espiritualidade” no currículo das escolas
médicas. A realização do evento dentro da USP é sintomática. Mostra que a
comunidade científica começa a se abrir para o estudo dos fenômenos que
envolvem a crença em um mundo espiritual e suas repercussões na saúde.
Outra
evidência da crescente importância do tema será a realização, também na
capital paulista, em junho, do IV Congresso Nacional da Associação
Médico-Espírita do Brasil. O encontro reunirá 2,5 mil profissionais
brasileiros e do Exterior. O evento trará cientistas de instituições
estrangeiras respeitadas, como o médico Harold Koenig, diretor do Centro
para o Estudo da Religião/Espiritualidade e Saúde da Universidade de
Duke (EUA). Boa parte dos especialistas estrangeiros não segue o
espiritismo, doutrina que conta com mais de dois milhões de adeptos no
Brasil. Ela é baseada na crença da existência e imortalidade de
espíritos, na sua capacidade de influenciar a vida e a saúde dos
habitantes na Terra e na possibilidade de comunicação com eles.
Mágoas – A
realização dos eventos é apenas uma mostra do crescimento da medicina
espírita no Brasil. Outra prova da sua força é o aumento do número de
associações médico-espíritas. Em 1995, existiam nove entidades. Hoje,
são 30. Essas entidades reúnem profissionais que praticam a medicina
convencional, mas usam sua crença para tentar melhorar a saúde do
paciente que quiser receber esse atendimento. De acordo com eles, o
organismo pode ser influenciado por espíritos que partiram da Terra –
chamados de desencarnados – ou por pensamentos das próprias pessoas.
“Indivíduos que guardam mágoas, por exemplo, sofrem alterações químicas
que podem levar ao aparecimento de doenças ou ao seu agravamento”, diz
Kátia Marabuco, oncologista da Universidade Federal do Piauí. “Nós,
espíritas, também acreditamos que as pessoas negativas podem atrair
espíritos desencarnados que contribuem para o surgimento de
desequilíbrios físicos e mentais”, explica. A tática dos profissionais
que seguem a doutrina é adotar medidas preconizadas pelo espiritismo
para reverter esses quadros. Uma delas é fazer a aplicação de passes
(imposição de mãos para energização e transferência de bons fluidos).
Foi dessa forma que a paisagista paulistana Celeste Nardi, 62 anos, se
tratou de depressão e outros problemas. Há quatro anos, frequenta uma
clínica onde recebe atendimento psicológico e espiritual. Hoje, Celeste
está bem. Para ajudar outros pacientes, ela aprendeu a aplicar o passe.
“Quem passou por uma situação semelhante transmite uma energia de cura
para quem necessita”, diz.
Essas
práticas também fazem parte do tratamento aplicado nos hospitais
espíritas existentes no País. Hoje, há 100 instituições do gênero. São
entidades que oferecem atendimento espiritual gratuito. A maioria delas é
destinada à assistência psiquiátrica. Nesses locais, o doente é
submetido ao tratamento tradicional – o que inclui remédios e terapia
psicológica – e, se desejar, cuida do espírito. Uma dessas instituições é
a Fundação Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luiz, em Guarulhos
(SP). Na instituição moram cerca de 700 portadores de deficiências
mentais e outros 500 são atendidos no ambulatório. A maior parte nasceu
com paralisia cerebral.
Tese – O
psiquiatra Frederico Leão é um dos médicos da fundação. Surpreso diante
da evolução de doentes que combinavam o atendimento espiritual e o
convencional, ele está fazendo uma tese de mestrado sobre o assunto, que
será defendida na USP. “Vi casos em que, quando os doentes se submetiam
ao tratamento médico e espiritual, tinham uma evolução boa”, conta. Um
dos casos é o do paciente Lúcio (nome fictício), 30 anos, que nasceu com
paralisia cerebral. Ele não se expressa direito e se locomove numa
cadeira de rodas. Há cinco anos, passou a ficar inquieto e manchas
escuras apareceram em sua pele. “Os médicos fizeram de tudo e nada
adiantou”, lembra-se Márcia Lopes, psicóloga da instituição. Continuaram
com os remédios, mas também aplicaram o passe. Os sintomas
desapareceram.
Outra
instituição é o Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, de
Curitiba. Lá, os médicos também adotam uma prática da doutrina que
ajudaria no tratamento. São as sessões de “desobsessão”, reuniões nas
quais médiuns (pessoas por meio das quais os espíritos se manifestariam)
serviriam como instrumento para que espíritos que estão atormentando o
doente se comunicassem e fossem convencidos a deixá-lo em paz. “Quando
isso acontece, o paciente fica mais calmo e seu estado clínico melhora”,
garante o psicólogo Mário Sérgio Silveira, da instituição. O Hospital
Espírita André Luiz, de Belo Horizonte, também usa o tratamento de
“desobsessão”. “Em casos difíceis de esquizofrenia, por exemplo, fazemos
essa recomendação”, afirma Roberto Lúcio de Souza, psiquiatra e diretor
da instituição. Em nenhum desses locais, no entanto, deixa-se a terapia
convencional de lado. “O tratamento espírita é complementar e não
alternativo. Quem passa pelo atendimento, para qualquer doença, não pode
deixar de tomar os remédios”, alerta Marlene Nobre, presidente da
Associação Médico-Espírita do Brasil.
Além
dos hospitais, outros lugares bastante procurados para tratamento
espiritual são os centros espíritas. Uma das maiores referências é o Lar
de Frei Luiz, no Rio de Janeiro. A instituição conta com 800 médiuns e
recebe cerca de quatro mil visitantes em cada um dos dias de atendimento
(quarta-feira e domingo). Há 12 anos, essa média era de 800 pessoas.
Todos buscam curas físicas, espirituais ou algum consolo. Há salas de
cura, de “desobsessão” e de passes. Uma das histórias mais incríveis
relacionadas ao centro foi a do compositor Tom Jobim (1927-1994). Quando
se submetia a tratamentos convencionais para tratar um câncer de
bexiga, Tom esteve duas vezes no Frei Luiz. Na véspera de viajar para
Nova York, em 1994, quando morreu de parada cardíaca no Hospital Mount
Sinai, o músico conversou com Ronaldo Gazolla, já falecido, na época
presidente do centro. Tom estava na dúvida se viajava e quis saber a
opinião de Gazolla. O médico desconversou, não queria influenciar o
maestro, embora soubesse que os espíritos já o consideravam curado. “Mas
se fosse com você?”, insistiu Tom. “Se fosse eu, não iria”, recomendou
Gazolla. Não se sabe o que teria acontecido ao compositor se ele tivesse
ouvido o conselho, mas com certeza não teria morrido na mesa de
cirurgia. Ana Lontra Jobim, viúva do músico, fala do assunto com
reserva. “Quando esteve lá, ele saiu mais aliviado”, conta. A
farmacêutica Helena Gazolla, viúva de Ronaldo Gazolla, que assumiu a
presidência da instituição, explica que, se ocorreram curas, são
consequência do merecimento dos doentes. “A pessoa se cura por meio de
sua fé. Os médiuns são apenas um canal de energia para ajudar na
recuperação de cada um”, diz.
Um
dos atendimentos mais importantes e incomuns em centros espíritas,
oferecido pelo Lar de Frei Luiz, são as sessões de materialização, nas
quais os espíritos poderiam ser vistos. A matéria-prima que daria forma
física ao espírito é chamada de ectoplasma (substância que, de acordo
com o espiritismo, seria liberada pelos médiuns para possibilitar a
materialização das almas). Nessas reuniões, ocorrem também cirurgias
espirituais, feitas por espíritos desencarnados que usariam o corpo do
médium.
Cirurgia – Em
Leme, no interior de São Paulo, há outro centro famoso pelas cirurgias.
É a instituição comandada pelo médium Waldemar Coelho, 65 anos, que
realiza essas operações há quatro décadas. “Curamos o corpo quando o
problema é material e o espírito quando o problema é um carma”, garante.
Dois espíritos se manifestariam por meio de Waldemar – um chinês e um
médico austríaco. Seriam eles que, sem nenhum corte ou sangue, operariam
as pessoas de câncer, diabete e dor nas costas, entre outros males.
Cerca de 300 pessoas são atendidas por semana. A fila de espera é de um
mês. O procedimento é feito num quarto reservado, na presença do médium e
de seus ajudantes.
Na
verdade, a cirurgia espiritual não é consenso entre os espíritas.
Muitos acreditam que a prática dá margem ao charlatanismo e não deveria
ser realizada. De qualquer forma, o fenômeno da medicina espírita
intriga a ciência e tem suscitado a realização de estudos. Um deles foi
feito no Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos do
Hospital das Clínicas de São Paulo, vinculado à Faculdade de Medicina da
USP. Os cientistas acompanharam o trabalho de um famoso cirurgião
espiritual de Goiás em seis pacientes. Eles verificaram que, embora não
tivesse sido dada anestesia, praticamente não houve queixa de dor.
Também não havia assepsia, mas nenhum doente teve infecção no período
observado (quatro dias). “Houve intervenção na região afetada, mas não
podemos garantir que funcionou”, observa o psiquiatra Alexander Almeida,
coordenador do núcleo. Outro médico que também faz pesquisas é o
psiquiatra Sérgio Felipe de Oliveira, presidente da Associação
Médico-Espírita de São Paulo. “Há evidências suficientes para que a
ciência se interesse pelo assunto. Na minha clínica, observo que quem
recebe atendimento médico e espiritual toma menos remédios e adere
melhor ao tratamento em relação aos que só passam pela consulta”,
afirma.
Santuário Espiritual Ramatís - Rua Carlos Krempel 70, Jardim Bosque, Leme - SP. CEP: 13610-000. Telefone: (19) 572-1100
Pesquisa – Oliveira
é um dos cientistas que defendem o aprofundamento das investigações
sobre a medicina e a espiritualidade, até para que seja possível
encontrar a resposta para os casos bem-sucedidos desse casamento. A
idéia é estudar não só os efeitos das práticas espíritas, mas o poder da
oração e da fé, por exemplo. Essa proposta já é seguida por
instituições estrangeiras. Alguns cientistas chegaram a conclusões
interessantes. “A religiosidade fortalece o sistema de defesa dos
pacientes”, disse a ISTOÉ Harold Koenig, da Universidade de Duke. Porém,
nem sempre os tratamentos que unem medicina e religiosidade, inclusive o
espiritismo, têm final feliz. Por isso, muitos cientistas vêem com
reservas essa relação. O psiquiatra Richard Sloan, da Universidade de
Columbia (EUA), é radical. “Os estudos feitos até agora são fracos. Não
mostram evidências de que a espiritualidade pode ajudar no tratamento”,
disse a ISTOÉ. Para o infectologista Caio Rosenthal, de São Paulo, não
cabe ao médico entrar nessa área. “Ele deve se ater àquilo que é
comprovado pela ciência”, defende. Já o Conselho Federal de Medicina não
critica os médicos que estimulam a prática religiosa a seus pacientes.
“Mas somos contra as pessoas que praticam a medicina sem ser médicos,
como as que realizam as cirurgias espirituais”, avisa Luiz Salvador de
Miranda Sá Júnior, primeiro secretário do CFM.
Na
verdade, a cirurgia espiritual não é consenso entre os espíritas.
Muitos acreditam que a prática dá margem ao charlatanismo e não deveria
ser realizada. De qualquer forma, o fenômeno da medicina espírita
intriga a ciência e tem suscitado a realização de estudos. Um deles foi
feito no Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos do
Hospital das Clínicas de São Paulo, vinculado à Faculdade de Medicina da
USP. Os cientistas acompanharam o trabalho de um famoso cirurgião
espiritual de Goiás em seis pacientes. Eles verificaram que, embora não
tivesse sido dada anestesia, praticamente não houve queixa de dor.
Também não havia assepsia, mas nenhum doente teve infecção no período
observado (quatro dias). “Houve intervenção na região afetada, mas não
podemos garantir que funcionou”, observa o psiquiatra Alexander Almeida,
coordenador do núcleo. Outro médico que também faz pesquisas é o
psiquiatra Sérgio Felipe de Oliveira, presidente da Associação
Médico-Espírita de São Paulo. “Há evidências suficientes para que a
ciência se interesse pelo assunto. Na minha clínica, observo que quem
recebe atendimento médico e espiritual toma menos remédios e adere
melhor ao tratamento em relação aos que só passam pela consulta”,
afirma.
Pesquisa – Oliveira
é um dos cientistas que defendem o aprofundamento das investigações
sobre a medicina e a espiritualidade, até para que seja possível
encontrar a resposta para os casos bem-sucedidos desse casamento. A
idéia é estudar não só os efeitos das práticas espíritas, mas o poder da
oração e da fé, por exemplo. Essa proposta já é seguida por
instituições estrangeiras. Alguns cientistas chegaram a conclusões
interessantes. “A religiosidade fortalece o sistema de defesa dos
pacientes”, disse a ISTOÉ Harold Koenig, da Universidade de Duke. Porém,
nem sempre os tratamentos que unem medicina e religiosidade, inclusive o
espiritismo, têm final feliz. Por isso, muitos cientistas vêem com
reservas essa relação. O psiquiatra Richard Sloan, da Universidade de
Columbia (EUA), é radical. “Os estudos feitos até agora são fracos. Não
mostram evidências de que a espiritualidade pode ajudar no tratamento”,
disse a ISTOÉ. Para o infectologista Caio Rosenthal, de São Paulo, não
cabe ao médico entrar nessa área. “Ele deve se ater àquilo que é
comprovado pela ciência”, defende. Já o Conselho Federal de Medicina não
critica os médicos que estimulam a prática religiosa a seus pacientes.
“Mas somos contra as pessoas que praticam a medicina sem ser médicos,
como as que realizam as cirurgias espirituais”, avisa Luiz Salvador de
Miranda Sá Júnior, primeiro secretário do CFM.
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